O silêncio dos inocentes

08:27 Angela Fakir 1 Comments


“Desde início do mundo , as crianças tem sido vítimas de toda a sorte de explorações, inclusive e, principalmente, de natureza sexual . No entanto a sua denúncia tem tido pouco eco, abafada pelo complô do silêncio com que a sociedade, em geral, e os especialistas, em particular, tem procurado encobrir .
O abuso sexual da criança deve ser visto como uma questão dos direitos da criança, tanto como um problema de saúde e de saúde mental. A primeira atitude então deve ser a de quebrar a barreira do silêncio, de modo a tornar mais pessoas
conscientes da existência deste fenômeno.
O abuso sexual contra a criança é uma forma presente de violência doméstica,geralmente mantido em silêncio, mascarado pela revolta, pela conspiração dos sentimentos de impotência, passividade e submissão. Tem uma distribuição “democrática “ ocorrendo em todos os níveis sócio-econômicos (Santos, 1991 ).
Nos últimos anos tem havido um aumento de consciência de que a freqüência do incesto é mais alta do que se imaginava. Isso tem sido enfatizado pela literatura profissional, na prática clínica e nas agências de cuidados e proteção à infância, que
tem numerosos casos relatados. Apesar disso, alguns  profissionais ainda escutam os relatos de molestação sexual como fantasias.
Segundo Rosenfeld (1979), a linha de demarcação entre a fantasia e a realidade é com freqüência obscura pois, a fantasia pode ser baseada em experiências reais familiares que foram deslocadas ou distorcidas. Embora pareça simples separar o que é incesto do que não é, a realidade das interações familiares confronta-nos com inúmeros dilemas.
Ferenczi, citado por Rosenfeld ( 1979), notou que muitas crianças pequenas que tinham de fato sido envolvidas  sexualmente com adultos ficavam freqüentemente confusas se o evento tinha realmente acontecido, uma confusão que foi atribuída a uma sobrecarga de sentimentos de desamparo acompanhados pela molestação. Tais confusões podem ser compreendidas não só em termos do desenvolvimento psicossexual e a repressão do que é traumático mas, também, em termos de fase do desenvolvimento cognitivo da criança.
Outra dificuldade na descrição e interpretação dos abusos sexuais em pesquisas é a falta de organização teórica e conceitual. O que é o incesto ? A resposta à essa pergunta é bastante complexa e não existe uma concepção única a esse respeito. Segundo Cohen (1993 (3)), a palavra incesto deriva do latim incestus, que significa impuro, manchado, não casto, ou seja, in - não e cestus -puro.
Existem diversas interpretações quanto à definição do que seja um comportamento incestuoso, e o fato é que , devido à complexidade do tema, nenhuma delas se mostra totalmente satisfatória. No entanto, todas as interpretações tem em comum a repulsa ao ato incestuoso.
Forward e Buck ( 1989 ) diferenciam a visão legal, da visão psicológica . A definição legal trataria o incesto como a relação sexual entre indivíduos com um grau máximo de parentesco e que está proibida por algum código religioso ou civil. A abordagem psicológica, deste fenômeno classificaria o incesto como qualquer contato abertamente sexual entre pessoas que tenham um grau de parentesco, por consangüinidade ou por afinidade, ou que acreditam tê-lo. Esta definição incluiria
padrasto, madrasta, sogro , sogra, meio-irmão ,avós e companheiros que morem junto com o pai ou a mãe, caso eles assumam a função de pais.
O Centro Nacional para crianças abusadas e negligenciadas , com sede nos Estados Unidos, chama o incesto de abuso sexual intrafamiliar, o qual é perpetrado em uma criança por um membro do grupo familiar da criança e inclui não somente a relação sexual mas, também, qualquer ato que tenha por finalidade estimular a criança sexualmente ou usar a criança para a estimulação sexual do abusador ou de qualquer outra pessoa.
A experiência do abuso sexual intrafamiliar assim como outras experiências traumáticas ( tais como , a guerra, campos de concentração , etc) chamam a atenção sobre o ajustamento cognitivo e afetivo do indivíduo. “O trauma, no sentido
mais popular do termo, significa uma quebra de fé”(Winnicott, 1965 ). Segundo Winnicott (1967(12b)), “ o trauma é um impacto provindo do meio ambiente e da reação do indivíduo a ele, que ocorre anteriormente ao desenvolvimento, por esse indivíduo, de mecanismos que tornem a experiência previsível.” É aquilo contra o qual o indivíduo não possui uma defesa organizada de maneira que um estado de confusão sobrevêm, seguido talvez de uma reorganização das defesas, estas de um
tipo mais primitivo do que as que eram suficientemente boas antes da ocorrência do trauma (Winnicott, 1969).
O trauma , portanto, varia de significado de acordo com o estágio de desenvolvimento emocional da criança. De início, o trauma implica em um colapso na área de confiabilidade da criança em um meio ambiente. O resultado de tal colapso mostra-se no fracasso ou no relativo fracasso no estabelecimento da estrutura da personalidade e organização do ego ( Winnicott, 1965 ).
Para Cole e Putnam (1992(4)), a maioria das vítimas de incesto se defronta com múltiplos aspectos desta experiência:
a) trauma físico e psicológico na forma de experiências sexuais atuais, incluindo violação do corpo;
b) extensos períodos de apreensão , culpa e medo nos contatos sexuais;
c) perda da confiança nas relações com pessoas emocionalmente significantes.
Observamos os efeitos de difusão e permanência do estresse no incesto entre os mais importantes domínios do desenvolvimento da criança, especificamente em termos de desenvolvimento da
auto-integridade física e psicológica e no desenvolvimento de processos auto-regulatórios, particularmente na regulação dos afetos e controle dos impulsos.
Schilder , citado por Arvanitakis (1993),conceituou imagem corporal ou esquema corporal para se referir a uma estrutura mental integrada da totalidade das experiências corporais, sensórias, motoras e afetivas. O desenvolvimento da representação do corpo é um processo dinâmico envolvendo desde o início os estágios psicossexuais. Está continuamente sujeito a reorganizações e elaborações sobre a ascendência de diferentes zonas erógenas e relações objetais associadas com elas.
Uma criança abusada sexualmente recebendo diretamente sob o seu corpo o impacto do erotismo do agressor e os impulsos agressivos, deve ficar profundamente abalada pelo comportamento do agressor e algumas das mudanças que ela pode perceber em seu corpo ( pênis ereto , ejaculação, etc.) , em adição ao que ela experimenta no seu próprio corpo. A falta de controle e a inabilidade
da criança para compreender claramente o que está acontecendo, freqüentemente intensificado pelo comportamento de negação do agressor da sua contribuição nos eventos, levaria particularmente à
uma dificuldade da criança não somente em manter algum nível de realidade , mas , também, em estabelecer uma clara diferenciação entre o seu corpo e o do seu abusador. Nas fantasias da criança, o corpo poderia tornar-se o local das mudanças aterrorizantes e misteriosas, estas gerando ansiedade. Segundo Arvanitakis (1993), tais representações persecutórias e prejudicadas do
corpo podem levar a criança à múltiplas somatizações, auto-mutilações e tentativas de suicídio.
Os vários significados pelos quais a vítima de abuso sexual tenta descarregar , administrar ou defender-se contra a excessiva estimulação sobre o seu corpo e o efeito de tempestade que o acompanha - isto é, a dissociação e distanciamento, a auto-estimulação e a auto-mutilação, a repetição na fantasia e a realidade, todos esses significados afetarão a representação corporal e , por conseguinte , a auto-representação.
Para Cole e Putnam ( 1992 ), o abuso sexual por um dos pais viola a crença básica da criança sobre segurança e verdade nas relações , causando distúrbios no julgamento e na habilidade de ter
relações satisfatórias nas quais estejam envolvidos sentimentos de amor e proteção. De fato, o suporte social típico, nas famílias incestuosas , é a força do sofrimento.”



Texto transcrito do artigo “O silêncio dos inocentes “- Abuso sexual intrafamiliar na infância - Algumas reflexões
Escrito por Stella Luiza Moura Aranha Carneiro e Mara Aparecida Alves Cabral

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