Ferida aberta
Já faz três anos que, enquanto lecionava como professora substituta da rede pública municipal, testemunhei uma conversa entre diversos educadores. Era a hora do intervalo e nos encontrávamos na sala dos professores. O som das vozes e brincadeiras das crianças no pátio enchia o ambiente de barulho e euforia. A sala não era grande, mobiliada por um armário de metal com livros e revistas, um banco de concreto que percorria três das quatro paredes que compunham a sala no qual sentávamos todos e uma pequena mesa com a garrafa térmica de café, xícaras e biscoitinhos caseiro que uma professora havia levado. Naquela tarde quente, entre um gole de café e outro, um educador trouxe à conversa informal que já acontecia a indagação: “Vocês ficaram sabendo da nossa ex aluna que foi esfaqueada?”
Todos sabiam, a atmosfera tornou-se instantaneamente outra.
A ex aluna estudara ali dos cinco aos onze anos de idade, da
serie de educação infantil até o quinto ano. Havia frequentado todas as series
que aquela instituição de ensino dispunha. Alguns professores ali a viram
crescer, quase todos haviam sido seus docentes em algum momento no decorrer dos anos em que
frequentara a escola.
A menina de 12 anos havia sido espancada violentamente e
golpeada no rosto e braços com uma faca por um homem que pagava a sua mãe para
ter relações sexuais com ela. O agressor, um motorista de caminhão de nome e
endereço desconhecidos, disse a mãe da menina que havia dado um corretivo na
criança por ela ter tentado tirar dinheiro da sua carteira enquanto ele dormia.
Tanto quanto o relato dessa violência inumana me causou dor e indignação a inversão de valores
manifesta na fala de muitos educadores ali. Houve quem afirmasse que ela já era
sem vergonha desde pequena, que as vestes e o comportamento que apresentava
pouco tinham de inocência. Ouvi uma professora dizer que muita gente naquela
comunidade sabia que a criança era molestada pelos parceiros da mãe desde muito
pequena. Uma juntou sua voz ao coro de absurdos e disse que essas questões são
como “briga de marido e mulher” e que se a própria família da criança não cuida
dos seus filhos, ela é que não poderia cuidar.
Outra ainda, dizer que havia
crianças que incentivavam os homens a tocá-las e que muitos homens na verdade
eram levados pelos pequenos a cometer seus atos de violência sexual.
Houveram ali educadores que, assim como eu, discordaram com
cada uma das crueldades ditas. Que se crianças apresentam um comportamento
inadequado e faz uso de roupas erotizadas isso acontece por que a indústria do
entretenimento e publicidade incentivam essa erotização da infância no intuito
de comercializar uma infinidade de produtos desnecessários e até prejudiciais
às crianças, baseados na lógica mercantilista da nossa sociedade de consumo que
valoriza o lucro muito mais do que a dignidade humana. Que erra gravemente como
ser humano e cidadão aquele que se omite diante do conhecimento de que uma
criança de sua comunidade é molestada, tornando-se cumplice da violência silenciosa imposta a
essas vítimas. Que é ação ineficaz e covarde perante a criança esperar que suas
famílias fragilizadas e desestruturadas resolvam sozinhas seus problemas. E,
sobretudo, jamais, em hipótese alguma, deve-se justificar a ação do adulto
agressor por uma suposta sedução exercida pela criança. A criança pode até
procurar estar na presença do adulto ( e
muitas vezes o faz por apreciar a atenção dedicada por parte desse), pode mesmo
sentir prazer com as carícias recebidas. Mas nada disso, no entanto, muda o
fato de que essa vivência de sexualidade é violenta e nociva ao desenvolvimento
infantil, a medida que impõe a criança questões e experiências que se encontram
muito além da sua capacidade de compreensão e consentimento e que só acontecem
baseadas em uma relação desigual.
Até hoje o homem que fez uso dessa criança, tampouco sua mãe
que obtinha dinheiro para alimentar seu vício em drogas ilegais, foram punidos.
É extremamente doloroso saber que não há nenhum indício de que esse crime vá
ser julgado, e que provavelmente o homem que feriu de maneira tão violenta essa
menina ainda faz uso de outras crianças para satisfazer sua sexualidade
doentia.
É impossível não pensar na relação que existe entre a ocorrência
e continuidade desse tipo de crime e o conjunto de idéias repletas de valores
distorcidos presentes ainda em nossa sociedade. Incontáveis crianças passam por
suas infâncias presas em uma realidade de sofrimentos por causa da inércia de
uma população que se limita a manifestar sua indignação diante dos relatos de
práticas de pedofilia e exploração sexual mostrados pela mídia com palavras
vazias e inúteis proferidas diante da televisão.
Temos que ir além disso. Há que se buscar e divulgar
conhecimento sobre os diversos aspectos que essa questão envolvem. Idéias e
conceitos que culpabilizam a criança não
podem ser aceitos. A compreensão egoísta e equivocada de que a proteção da
criança é responsabilidade exclusiva de
sua família não pode justificar nossa omissão diante desse mal. Até porque, não
se engane, não há nada que possa justificar a ausência de ações que ajude a
modificar essa realidade cruel. Portanto, conheça, lute, grite, aja, faça de
nosso tempo um tempo de mudança...
A menina, depois de passar alguns dias no hospital para
curar seus ferimentos mudou-se para a casa de um parente em uma cidade vizinha.
Carrega em sua face a cicatriz da agressão e em sua alma uma ferida aberta que
talvez nunca se feche.
TRISTE
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