Pedofilização como prática social contemporânea

11:57 Angela Fakir 0 Comments


* trecho transcrito do artigo "Afinal, quem é mesmo o pedófilo?" de Jane Felipe.

O conceito de pedofilização tem sido por mim utilizado no intuito de pontuar as contradições existentes na sociedade atual, que busca criar leis e sistemas de proteção à infância e adolescência contra a violência/abuso sexual, mas ao mesmo tempo legitima determinadas práticas sociais contemporâneas, seja através da mídia – publicidade, novelas, programas humorísticos –, seja por intermédio de músicas, filmes, etc., onde os corpos infanto-juvenis são acionados de forma extremamente sedutora. São corpos desejáveis que misturam em suas expressões gestos, roupas e falas, modos de ser e de se comportar bastante erotizados.
Estudos divulgados pela Universidade da Califórnia mostram que dois terços dos programas de entretenimento dirigidos a crianças e adolescentes contém piadas pornográficas ou fazem referência a sexo. As propagandas, tanto impressas quanto as veiculadas na TV, se utilizam fartamente do recurso de exibição dos corpos femininos com forte apelo erótico.
Propagandas de cervejas, de carros, de calçados, dentre tantas outras, remetem a idéia de um corpo para o consumo, que pode ser acionado para o deleite de fantasias sexuais, especialmente as masculinas. Como é possível perceber, o corpo erotizado é constantemente colocado em discurso através de diferentes artefatos culturais, produzindo assim o que chamamos de pedagogias da sexualidade. 
Um dos artefatos mais importantes na atualidade que tem ampliado significativamente seu campo de ação no que tange a espetacularização da sexualidade é a música. Enquanto artefatos culturais, as músicas estão a nos dizer uma série de coisas, indicando-nos modos de ser e sentir, constituindo-nos como sujeitos. Elas expressam concepções de mundo de uma época, de uma determinada cultura. Elas evidenciam, entre outras coisas, formas de representar homens e mulheres e suas relações afetivosexuais.
Dessa forma, a música sempre educa e produz conhecimentos. Recentemente, as músicas de estilo funk ganharam destaque nacional, acionando um repertório repleto de referências explícitas ao exercício da sexualidade. Não quero dizer com isso que esse estilo musical tenha inaugurado o tema, pois as músicas, nos seus mais variados estilos e épocas sempre se reportam, de um modo ou de outro, a temas em torno da sexualidade, algumas de forma mais sutil, outras de forma explícita. Não pretendo aqui discutir a questão do ponto de vista moral, mas trazer algumas reflexões acerca das representações de gênero e sexualidade que essas músicas, bem como outros artefatos culturais acionam. Em recente trabalho apresentado por Fernanda Lazzaron – No mundo das “tchuchucas” e “glamurosas”: representações de gênero e sexualidade no funk – foram analisadas quinze músicas desse estilo musical, que vem se constituindo como um dos artefatos culturais mais importantes dos grandes centros urbanos no cenário brasileiro na atualidade. Tais músicas, amplamente veiculadas nas rádios, nos bailes e na TV, fazem muito sucesso entre jovens (e também entre as crianças), de modo que na escola, nos momentos de recreio, é comum vermos grupos de meninas dançando as coreografias dessas músicas.
No caso do funk, as letras se caracterizam pela referência explícita a práticas sexuais, sem rodeios ou sutilezas, remetendo a um mero exercício sexual, onde os órgãos genitais são mencionados, atos sexuais em suas mais variadas formas são proclamados, acompanhadas de coreografias sensuais, que remetem à exibição dos corpos femininos. Trata-se de uma sexualidade explícita, sem pudores, nem rodeios. O amor e a paixão, temas tão recorrentes nas canções de décadas passadas (não significa que hoje as músicas não se refiram a esse tema), cedem lugar ou pelo menos parecem disputar espaço com músicas que proclamam práticas sexuais. Essas músicas, associadas a outras produções da cultura visual, talvez possam acender um interessante debate sobre os limites do que pode ou não ser considerado hoje como erotismo, pornografia e obscenidade. Segundo um radialista entrevistado, o público que mais pede as músicas está na faixa etária dos 10 aos 20 anos.
Outro exemplo no campo da música, e que remete àquilo que venho chamando de pedofilização, pode ser encontrado na música do grupo porto alegrense Bidê ou Balde, intitulada E Porque Não? A letra diz o seguinte:
Eu estou amando
A minha menina
E como eu adoro
Suas pernas fininhas
Eu estou cantando
Pra minha menina
Pra ver se eu convenço
Ela entrar na minha
E por que não?
Teu sangue é igual ao meu
Teu nome fui eu quem deu
Te conheço desde que nasceu
E por que não?
Eu estou adorando
Ver a minha menina
Com algumas colegas
Dela da escolinha
Eu estou apaixonado
Pela minha menina
Ouve o jeito que ela fala
Olha o jeito que ela caminha.
E por que não?
Teu sangue é igual ao meu
Teu nome fui eu quem deu
Te conheço desde que nasceu
E por que não?
Embora os autores da música tenham negado se tratar de uma exaltação ao incesto, uma das formas de pedofilia, levantando a discussão do que pode ou não ser considerado arte e quais os seus limites, é inevitável pensarmos no quanto essa letra produz um conhecimento, bem como a possibilidade desse corpo infantil – da menininha – ser representando como desejável. O incesto, bem como outras formas de pedofilia, remetem à problematização das relações desiguais de poder entre adultos e crianças. Mesmo que, ao serem tocadas (e nem sempre o são de forma violenta), as crianças sintam prazer, elas não têm escolha diante do adulto – pai, tio, avô, mãe – que a coloca numa posição de subordinação, mesmo que utilize palavras carinhosas, mesmo que diga o quanto as amam e isso que estão fazendo é para o bem delas, como costumam referir.
Outro ponto interessante refere-se à estreita relação entre pedofilização e consumo, uma vez que nos contextos atuais, as  crianças têm sido descobertas como consumidoras exigentes, ao mesmo tempo em que se transformam em objetos a serem consumidos, desejados, admirados. É possível observar a grande quantidade de programas de TV que investem cada vez mais em quadros específicos para crianças, onde elas são entrevistadas, cantam, dançam, representam, inspiradas/os quase sempre em astros nacionais e internacionais. As meninas, especialmente, procuram imitar mulheres adultas muito sensuais e, por vezes, os próprios apresentadores do programa se dirigem a elas de modo erotizado, mesmo sendo crianças.
Outra importante dimensão do conceito de pedofilização pode ser encontrada em revistas dirigidas ao público masculino heterossexual, na medida em que as jovens e belas modelos, que aparecem em muitos dos ensaios sensuais e pornográficos veiculados por essas revistas, utilizam-se de elementos do mundo infantil, como bichinhos de pelúcia, roupas de colegial, etc. A própria aparência das modelos (mesmo sendo maiores de idade), remete-nos às feições de meninas pré-adolescentes, associada a essa mistura de ingenuidade e sedução. Nesse movimento, temos, portanto, o consumo dos corpos infantis por um lado, por outro, imagens de mulheres adultas vestidas e posicionadas como menininhas. O que se pode problematizar diante dessas questões, certamente, é um complexo emaranhado discursivo no qual as crianças e os significados da infância se encontram atualmente.
Um aspecto interessante nesse processo é discutir a construção das masculinidades heterossexuais articulando-as ao conceito de pedofilização, visto que há um discurso muito corrente em torno da idéia de que os homens possuem uma sexualidade mais “animalesca”, incontrolável, de certa forma insaciável, como mencionei anteriormente. Tal concepção é muito presente nos casos de estupro, em que o agressor afirma ter sido provocado pela vítima, em função das roupas que ela usava ou de como se comportava. O historiador Georges Vigarello já mostrava o quanto esse argumento era comumente utilizado pelo agressor, mesmo que a vítima tivesse apenas cinco anos de idade.
Poderíamos, então, nos perguntar de que modo estamos construindo esse olhar masculino em torno das menininhas, colocadas como objeto de sedução? Ao disponibilizarmos determinadas imagens das menininhas não estamos construindo apenas um modo de representá-las direcionadas somente para os homens, mas também para as próprias meninas e adolescentes, que vão sendo subjetivadas por essas pedagogias da sexualidade.
Elas aprendem que para serem desejadas, amadas, valorizadas, precisam se comportar de determinada forma, que o poder das mulheres está constantemente referido e atrelado à sua capacidade de sedução, que passa por um belo corpo e a utilização deste como performático.

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