A história de Clara
A historia de Clara, transcrita do artigo “Abuso sexual de crianças e adolescentes
Avanços e desafios da rede de
proteção para implantação de fluxos operacionais” (*1) relata a vivência de uma
criança vitima de abuso sexual e as atitudes que foram tomadas por profissionais
ao se depararem com essa triste realidade. As autoras fazem uso de nomes
fictícios para preservar a privacidade de crianças reais.
A história de Clara
Clara tinha cinco anos quando chegou para atendimento em uma instituição especializada na atenção psicossocial a situações de violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes.
Não era a primeira vez que sua família era encaminhada
para acompanhamento: seis meses antes, um comunicado de espancamento sofrido
por seu irmão, Paulo, e cometido por seu pai havia iniciado esse processo. A
família vinha sendo acompanhada pelo Serviço Social da instituição desde então,
e o irmão de Clara passava por atendimento psicológico em uma Unidade Básica de
Saúde mais próxima a casa deles.
Entretanto houve um segundo comunicado, dessa vez
relacionado à Clara: a escola comunicou o Conselho Tutelar sobre a suspeita de
que Clara vinha sofrendo abuso sexual de seu pai. A suspeita surgiu quando
Clara recusou-se a voltar para casa após a escola, e, quando questionada sobre
o motivo, dissera que não queria mais dormir com seu pai. A diretora da escola
conversou com Paulo, irmão de Clara, que confirmou que esta dormia com o pai, e
relatou o abuso: o pai colocava o pênis na vagina de Clara e ela chorava. Paulo
acrescentou que ele não podia fazer nada, se não o pai bateria nele. Paulo tinha
sete anos à época.
Antes de proceder ao comunicado, a diretora da escola
conversou também com a pessoa que cuidava das crianças enquanto seu pai
trabalhava (a mãe deles havia falecido). Esta mulher informara à diretora que
já havia notado que Clara estava frequentemente com a calcinha suja pela manhã
de uma substância esbranquiçada que poderia ser sêmen.
Além de comunicar ao Conselho Tutelar, a escola realizou
um Boletim de Ocorrência, na Delegacia de Polícia da Mulher do município, e
colocou-se à disposição para atender às convocações para entrevistas em todas
as instituições necessárias (Delegacia de Polícia, Conselho Tutelar e
instituição de atendimento psicossocial).
Clara passou por exame de corpo de delito, que não
apresentou nenhum indício que confirmasse o abuso sexual sofrido. E deu início
ao atendimento psicológico na instituição que já acompanhava a família devido
ao espancamento de seu irmão.
O pai, quando chamado, compareceu à entrevista com o
setor de Serviço Social e de Psicologia da mesma instituição, porém, uma única
vez. Na entrevista negou o abuso sexual, e colocou-se em posição de vítima das
dificuldades sociais que vivia para criar os dois filhos, sozinho. Devido a seu
quadro de alcoolismo, foi realizado também encaminhamento para tratamento
especializado, na rede de saúde do município. Entretanto, ele não seguiu este
encaminhamento e, quando foi novamente chamado
para iniciar um processo de avaliação psicológica na
instituição que acompanhava o caso, não mais compareceu.
Clara foi levada às primeiras entrevistas pela diretora
da escola, uma vez que o pai disse não poder sair do trabalho para levá-la.
Contudo, assim que ele foi chamado para dar início ao próprio atendimento, ele
não só não compareceu como também proibiu a escola de continuar levando Clara à
instituição.
Foram feitas tentativas de intervenção junto ao Conselho
Tutelar e ao Poder Judiciário para que ele retomasse seu atendimento e o de
Clara, sem sucesso.
Diante da recusa do pai em atender às determinações do
Conselho Tutelar e do Poder Judiciário para o atendimento da família, as
crianças foram abrigadas em uma instituição do município, sem poder receber
visita do pai, como medida de proteção contra possíveis novas vitimizações
físicas e sexuais.
Uma vez abrigados, Clara e Paulo retomaram os
atendimentos psicológicos, e a psicoterapia foi indicada para ambos, após o
processo psicodiagnóstico. Houve também mudança de escola, devido à mudança de
bairro.
No atendimento psicológico, era possível notar a
dificuldade de Clara em lidar com limites e perdas nas relações afetivas. A
criança desenvolveu mecanismos de defesa como a cisão, numa tentativa de evitar
o sofrimento gerado por sua realidade. O relato sobre o abuso aconteceu apenas
uma vez, durante o processo psicodiagnóstico. E Clara só falou sobre o pai em
seu último atendimento. A dificuldade de confiar nas pessoas era outro traço
marcante, e foco de atenção da psicoterapeuta. Clara parecia ter criado também
uma “máscara” de menina “boazinha e amável”, que a psicoterapeuta pôde entender
como uma defesa diante da necessidade de ser aceita, amada e não abandonada.
Nos atendimentos, sua agressividade pôde aparecer aos poucos, e pôde ser
trabalhada, com a segurança de que não seria rejeitada por aquilo que ela era
de fato.
Durante o acompanhamento, eram comuns reuniões entre os
técnicos do abrigo, da escola e da instituição de atendimento psicossocial para
discussão da situação, das necessidades das crianças e da evolução do
tratamento. Relatórios também eram frequentemente solicitados pelo Poder
Judiciário sobre o acompanhamento psicossocial das crianças.
Clara e Paulo permaneceram no abrigo durante dois anos e
cinco meses. Segundo informações do PodermJudiciário, o prolongamento deste
período deu-se devido ao processo de destituição do poder de família do pai, e
de adoção por um casal de tios, residentes no Nordeste. A distância do estado
onde eles iriam morar com os tios gerou demora maior no processo de avaliação
da família, dado o cuidado necessário para que a adoção fosse realizada com
segurança. Nesse processo, o Poder Judiciário de cada estado realizou
avaliações, e trocou informações até o veredicto favorável à adoção.
É importante ressaltarmos, contudo, que durante este
processo, a instituição que realizava o acompanhamento psicossocial das
crianças não foi informada sobre o processo de adoção que corria.
Com isso, quando foi definida a adoção, não houve tempo
para o desligamento das crianças do atendimento psicológico, gerando um novo
rompimento súbito na vida das mesmas, que poderia ser minimizado com uma
comunicação mais eficiente entre as duas instituições da rede de proteção.
A escola fez o papel de acolhimento inicial da criança –
sem pré-julgamentos e acreditando na fala da criança – e de encaminhamento para
a rede de forma assertiva, comunicando ao Conselho Tutelar e à Delegacia de
Polícia. Dessa forma, não se limitou a seu papel institucional de executar a
prevenção primária (evitando a ocorrência de situações de violência), mas
acompanhou integralmente a criança, no momento em que identificou uma lacuna na
rede social dessas crianças, que não podiam contar com a proteção materna ou de algum outro membro
familiar. Ainda que possamos considerar que a escola, com o intuito de
proteção, tenha ultrapassado em alguns momentos o seu papel (ao
responsabilizar-se por levar as crianças ao atendimento, por exemplo),
entendemos que, nesta s ituação esta atuação foi ao
encontro das necessidades das crianças, em consonância
com as demais ações da rede de proteção, para que a família pudesse receber a
atenção necessária.
No entanto, assinalamos também que tanto o acolhimento
inicial prestado pela escola, quanto o acompanhamento posterior desempenhado
por esta instituição constituem-se fator importante e essencial para minimizar
as consequências negativas da violência sexual, bem como para a proteção contra
novas vitimizações.
Este aspecto podemos relacionar diretamente ao que nos
apresenta a literatura especializada em relação
ao momento da revelação do abuso sexual. Gabel (1997) e Azevedo e Guerra
(2000) ressaltam em seus textos o fato de que o vínculo existente entre a
criança e a pessoa a quem ela escolhe revelar o abuso sexual vivido e a
qualidade do acolhimento que lhe é oferecido neste momento, é o que possibilita
à
criança uma entrada menos traumática na rede de proteção.
Acreditamos que, com isso, em todas as intervenções
seguintes a que a criança terá de ser submetida (entrevistas em diferentes
instituições, como Delegacia, Fórum etc.) poderão acontecer de maneira que ela
perceba que sua fala tem valor, que acreditam nela e que com isso, poderá ser
protegida efetivamente.
Ao mesmo tempo, na história de Clara e de Paulo,
observamos um curto-circuito nas ações do Poder Judiciário. Apesar desta
instituição solicitar com frequência relatórios sobre a situação do acompanhamento
psicossocial das crianças, bem como ter agido de forma a protegê-los quando direcionou-os
ao abrigo, notamos uma falha na comunicação com a instituição de atendimento,
que não foi informada, em nenhum momento, sobre o processo de destituição de
poder parental e de adoção que ocorria, o que impossibilitou aos profissionais
responsáveis pelo atendimento trabalhar estas questões junto às crianças.
Importante ressaltar que, além do Poder Judiciário,
também o abrigo e a própria instituição de atendimento poderiam ter buscado
maiores informações sobre o processo, por meio do estabelecimento de uma rotina
de reuniões periódicas para troca de informações e discussão sobre o andamento
do caso nas diferentes instituições da rede de proteção em que Clara e Paulo
estavam inseridos. Este curto-circuito impediu que a transição das crianças do
abrigo para a família adotiva fosse melhor cuidada no processo psicoterapêutico
de ambos, favorecendo um novo trauma quando da separação “abrupta” tanto dos
terapeutas quanto das pessoas com quem conviveram por mais de dois anos no
abrigo e na escola.
*1- Abuso sexual
de crianças e adolescentes
Avanços e desafios da rede de
proteção para implantação de fluxos operacionais
Jaqueline Soares Magalhães Maio
Maria Gorete de Oliveira
MedeirosVasconcelos
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