TÃO CEDO !
Eu conheci muito bem essa criança. Ela foi molestada
sexualmente desde muito cedo. Tão cedo que não seria capaz de precisar a idade que tinha no instante em que seu
corpo infantil foi tocado para satisfazer o desejo de seu agressor pela
primeira vez. Tão cedo que só compreendeu que a atenção e carícias que recebia
eram erradas quando notou que ele se comportava de modo diferente na presença
de outras pessoas. Tão cedo que acreditou que as ameaças que sofria eram reais
e que a culpa por qualquer desdobramento da revelação daquele segredo seria
sua.
Talvez você possa estar pensando que a família dessa criança
era pobre e desestruturada, que seus pais não tinham condições financeiras e
morais para garantir proteção e uma infância livre desse tipo de agressão..
Mas, eu também conheci muito bem a família dessa criança. Seus pais tinham
condições financeiras suficientes para fornecer alimentação, lazer, saúde,
moradia e educação de qualidade. E, quanto a moral, pode-se afirmar que foram
exemplo de moral nas cidades em que viveram na condição de líderes religiosos que eram. No entanto, nada disso
impediu que ela tivesse seu desenvolvimento e integridade feridos.
A medida em que ela crescia deixava sinais de que sofria,
não se relacionava bem com outras crianças, tinha dificuldades na escola, não
cuidava da higiene do seu corpo e tampouco de seus objetos, chorava por horas
infindáveis.
Uma vez quando
cursava a pré-escola, viu que o portão estava aberto e fugiu sem que ninguém
notasse. Andou poucas quadras, embora para ela parecesse que havia andado muito
mais, e sentou-se em um banco de uma praça. Estava muito frio e ela então tirou
o casaco, queria morrer congelada como a menina do conto “A menina e os
fósforos” que a professora havia lido na escola. Outra vez com 9 anos engoliu
dezenas de comprimidos calmantes do pai que encontrou no porta luvas do carro,
foi levada as pressas ao hospital e salvou-se.
Mentiu, como mentia
sempre. Ao ser indagada pela mãe sobre porque estava na praça sozinha e sem
agasalho disse que sentiu vontade de andar um pouco e que estava com calor, no
hospital afirmou que leu a bula que dizia que os comprimidos eram calmantes e tomou o remédio para se acalmar por que estava nervosa. Na
verdade o que ela não sabia dizer era que desejava a morte, morrer parecia ser
mais fácil do que viver a angústia de ser diferente, o asco crescente de toda a
situação que vivia a cada férias e feriado quando o encontro inevitável com seu
agressor acontecia, a confusão e a dificuldade que tinha para compreender a
dinâmica familiar, ter que lidar com os próprios lábios cerrados por ataduras de ameaças, culpa
e vergonha.
Essa criança não morreu, ela
encontrou formas de lidar com tudo isso a medida em que cresceu e conquistou meios para lidar com sua história e seguir em
frente. Recordei-me dela hoje ao ler trechos de uma monografia sobre as
consequências da violência sexual (http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/monografias/consequencias_psicologicas_longo_prazo_violencia_sexual_infancia.pdf ), é um texto muito bom que relata a pesquisa
feita por acadêmicas do curso de psicologia com a finalidade de estabelecer uma relação entre a violência sexual sofrida na infância e as consequências psicológicas a longo prazo. Penso que o relato sobre a
menina que eu conheci, represente um pouco essa realidade de violência sexual
na infância e as consequências no desenvolvimento das crianças que passam por
isso.
Embora seja difícil lidar com o assunto penso que a informação seja um dos caminhos para evitá-la. Sei que se os pais daquela criança tivessem conhecimento de que o comportamento da filha pudesse sinalizar a violência silenciosa que sofria, teriam impedido que se repetisse por todos os anos de sua infância. Portanto, informem-se, denunciem, evitem... O poder de mudar essa realidade está nas mãos de cada um de nós.
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