TÃO CEDO !

06:53 Angela Fakir 0 Comments


Eu conheci muito bem essa criança. Ela foi molestada sexualmente desde muito cedo. Tão cedo que não seria capaz de precisar  a idade que tinha no instante em que seu corpo infantil foi tocado para satisfazer o desejo de seu agressor pela primeira vez. Tão cedo que só compreendeu que a atenção e carícias que recebia eram erradas quando notou que ele se comportava de modo diferente na presença de outras pessoas. Tão cedo que acreditou que as ameaças que sofria eram reais e que a culpa por qualquer desdobramento da revelação daquele segredo seria sua.
Talvez você possa estar pensando que a família dessa criança era pobre e desestruturada, que seus pais não tinham condições financeiras e morais para garantir proteção e uma infância livre desse tipo de agressão.. Mas, eu também conheci muito bem a família dessa criança. Seus pais tinham condições financeiras suficientes para fornecer alimentação, lazer, saúde, moradia e educação de qualidade. E, quanto a moral, pode-se afirmar que foram exemplo de moral nas cidades em que viveram na condição de líderes  religiosos que eram. No entanto, nada disso impediu que ela tivesse seu desenvolvimento e integridade feridos.
A medida em que ela crescia deixava sinais de que sofria, não se relacionava bem com outras crianças, tinha dificuldades na escola, não cuidava da higiene do seu corpo e tampouco de seus objetos, chorava por horas infindáveis.
 Uma vez quando cursava a pré-escola, viu que o portão estava aberto e fugiu sem que ninguém notasse. Andou poucas quadras, embora para ela parecesse que havia andado muito mais, e sentou-se em um banco de uma praça. Estava muito frio e ela então tirou o casaco, queria morrer congelada como a menina do conto “A menina e os fósforos” que a professora havia lido na escola. Outra vez com 9 anos engoliu dezenas de comprimidos calmantes do pai que encontrou no porta luvas do carro, foi levada as pressas ao hospital e salvou-se.
 Mentiu, como mentia sempre. Ao ser indagada pela mãe sobre porque estava na praça sozinha e sem agasalho disse que sentiu vontade de andar um pouco e que estava com calor, no hospital afirmou que leu a bula que dizia que os comprimidos eram calmantes e  tomou o remédio  para se acalmar por que estava nervosa. Na verdade o que ela não sabia dizer era que desejava a morte, morrer parecia ser mais fácil do que viver a angústia de ser diferente, o asco crescente de toda a situação que vivia a cada férias e feriado quando o encontro inevitável com seu agressor acontecia, a confusão e a dificuldade que tinha para compreender a dinâmica familiar, ter que lidar com os próprios  lábios cerrados por ataduras de ameaças, culpa e vergonha. 
Essa criança não morreu, ela encontrou formas de lidar com tudo isso a medida em que cresceu e conquistou  meios para lidar com sua história e seguir em frente. Recordei-me dela hoje ao ler trechos de uma monografia sobre as consequências da violência sexual (http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/monografias/consequencias_psicologicas_longo_prazo_violencia_sexual_infancia.pdf  ), é um texto muito bom que relata a pesquisa feita por acadêmicas do curso de psicologia com a finalidade de estabelecer uma relação entre a violência sexual sofrida na infância e as consequências psicológicas a longo prazo. Penso que o relato sobre a menina que eu conheci, represente um pouco essa realidade de violência sexual na infância e as consequências no desenvolvimento das crianças que passam por isso.
Embora seja difícil lidar com o assunto penso que a informação seja um dos caminhos para evitá-la. Sei que se os pais daquela criança tivessem conhecimento de que o comportamento da filha pudesse sinalizar a violência silenciosa que sofria, teriam impedido que se repetisse por todos os anos de sua infância. Portanto, informem-se, denunciem, evitem... O poder de mudar essa realidade está nas mãos de cada um de nós.

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